top of page

POSTS DO BLOG

Indisponibilidade do bem de família, guinada de 180 graus no regime de proteção constitucional à moradia digna.

Devedores hiposufientes x Credores cada vez mais hipersuficientes?
Devedores hiposufientes x Credores cada vez mais hipersuficientes?

Ponderação sistemática à inovação jurisprudencial, com vista ao necessário controle de constitucionalidade e à hermenêutica técnica.


1. A indisponibilidade do bem de família: instrumento legítimo de coerção ou enfraquecimento da proteção constitucional à moradia (único bem de família)?


1.1 Base legal e natureza do instituto

Lei 8.009/1990

  • O art. 1º da Lei 8.009/1990 estabelece a impenhorabilidade do imóvel residencial da entidade familiar, como regra geral (salvo hipóteses expressas).

  • O art. 3º contém hipóteses excepcionais de penhorabilidade ou de constrição do bem de família (ex: dívidas trabalhistas domésticas, tributos, hipoteca, pensão alimentícia, financiamento do próprio imóvel etc.).

  • A lei, no seu texto, não menciona expressamente a indisponibilidade (ou restrição de disposição) do bem de família como medida cautelar ou constritiva — porque sua disciplina pressupõe que o bem de família não seja objeto de constrição judicial, salvo via ato de penhora/expropriação nas hipóteses legais.

Natureza jurídica da indisponibilidade

  • A indisponibilidade é uma medida cautelar ou medida de constrição acessória, que não implica, de imediato, a penhora, expropriação ou retirada da posse, mas consiste na imposição de restrições ao direito de disposição (vender, onerar, transferir).

  • Trata-se de medida atípica (não prevista expressamente na Lei 8.009) no contexto do bem de família, mas que encontra respaldo no art. 139, IV, do CPC, que autoriza o juiz a “determinar todas as medidas que assegurem o cumprimento de ordem judicial”, inclusive medidas de coerção indireta.


A indisponibilidade transforma o “bem” em “usufruto vitalício” durante a restrição. Ela não retira a posse ou uso do imóvel, mas impede que o devedor comercialize ou onere o bem enquanto durar a constrição.


1.2 O precedente/referência: REsp 2.175.073/PR (3ª Turma, julgado em 09/09/2025, publicado em 17/09/2025)

Esse precedente inova no sentido de submeter o bem de família à limitação de disponibilidade, algo que, na prática, afeta diretamente o núcleo de proteção do instituto (a impenhorabilidade), ainda que à primeira vista pareça “menos invasivo” que a penhora.

Também vale observar que, em 2025, o STJ reforçou que a CNIB pode ser usada em execuções de título extrajudicial entre particulares, após esgotamento dos meios típicos (penhora, etc.).

Ademais, o STJ já pautou referência repetitiva sobre exceções da impenhorabilidade, sobretudo em casos de garantia real feita por devedor ou sócio, mas sempre no contexto de penhora/expropriação.

Esse precedente, portanto, projeta a indisponibilidade para o contexto do bem de família, e não apenas nos casos tributários ou de improbidade, como já era admitido em alguns precedentes de direito público.


1.3 Riscos e pontos de fragilidade da nova jurisprudência

Do ponto de vista do devedor, a inovação jurisprudencial contém riscos que precisam ser confrontados com argumentos estruturais:

  • Violação do núcleo da proteção constitucional à moradia

    • A Constituição Federal consagra o direito à moradia (art. 6º, art. 23, e dispositivos conexos) e assegura dignidade humana (art. 1º, III). A impenhorabilidade do bem de família, por sua vez, é uma materialização dessa proteção frente ao direito de crédito.

    • A indisponibilidade, ao tolher a faculdade de dispor do imóvel, pode comprometer direitos correlatos de mobilidade, rearranjo familiar, negociação, e impedir o devedor de usar o bem como lastro para quitação de dívidas ou crédito saudável (ex: permuta, dação, alienação, uso para garantia de refinanciamento da dívida originária).

    • Se a proteção ao bem de família for transformada em garantia indireta do credor, o instituto do bem de família pode perder seu caráter legal e se tornar um grande empecilho e aviltamento ao direito de propriedade.

  • Ofensa ao princípio da reserva legal / princípio da legalidade estrita

    • A medida de indisponibilidade para bem de família, por não estar prevista expressamente na Lei 8.009/1990, exige justificativa rigorosa de compatibilidade com o sistema legal.

    • A adoção desta medida deve respeitar os princípios da legalidade, da segurança jurídica e da proteção da confiança legítima que se conecta aos princípios da segurança jurídica e da boa-fé.

  • Risco de prejuízo desproporcional ao devedor hipossuficiente

    • A indisponibilidade, se aplicada sem critérios restritivos ou modulação, pode provocar grave comprometimento de patrimônio mínimo, dificultando reestruturação, negociação ou mesmo sobrevivência do núcleo familiar.

    • Pode ferir o princípio da menor onerosidade da execução (art. 805, CPC), segundo o qual o devedor não deve ser submetido a sacrifício excessivo quando existirem meios menos gravosos.

  • Tensão com a jurisprudência precedente e a jurisprudência “em teses” do STJ

    • A “Jurisprudência em Teses” do STJ já estabelece entendimento de que medidas cautelares fiscais de indisponibilidade não podem recair sobre bem de família, em virtude da proteção conferida pelo art. 1º da Lei 8.009/1990.

    • Também há teses fixadas (2025) no STJ no sentido de que a proteção não é absoluta, mas que a relativização (no contexto de hipoteca ou garantia real) deve observar critérios rigorosos e provas cabais.


Diante disso, poder-se-ia argumentar que, embora a inovação favoreça o credor, ela deve ser contida por limites constitucionais e pelo controle de constitucionalidade (via modulação, princípios fundamentais, controle difuso ou concentrado).


1.4 Riscos e consequências a serem evitados

  • A indisponibilidade do bem de família não é, em princípio, inconstitucional, desde que adequadamente limitada e justificável, mas pode fragilizar a proteção constitucional à moradia se aplicada de modo genérico, indiscriminado ou sem salvaguardas.

  • Se transformada em regra automática ou usada sem moderação, a inovação jurisprudencial teria risco de enxugar o conteúdo efetivo da impenhorabilidade, invertendo o equilíbrio em favor do credor e relegando o devedor à condição vulnerável.


Logo, ela poderia ser admitida em casos específicos e justificáveis, desde que salvaguardados os fundamentos constitucionais, limites materiais e processuais e pela necessidade de proporcionalidade / moderação.


2. Tendência de ampliação de instrumentos do credor x risco de desequilíbrio em execuções civis


2.1 O movimento contemporâneo de fortalecimento da efetividade da execução

Nas últimas décadas, o direito processual civil experimentou um movimento de valorização da efetividade da tutela jurisdicional (efetividade da execução), criando instrumentos que garantam que decisões judiciais não fiquem sem concretização. Exemplos:

  • Uso de medidas atípicas de constrição ou coerção (art. 139, IV, CPC)

  • Ampliação das ordens de bloqueio de ativos financeiros (via BACENJud / Sisbajud)

  • Impugnações restritas, prazos mais enxutos, flexibilidade processual

  • Uso da CNIB como instrumento de atuação coordenada para impedir dilapidação patrimonial (inclusive em execuções entre particulares).


Nesse contexto, a inovação jurisprudencial da indisponibilidade do bem de família pode ser entendida como mais um instrumento a serviço da efetividade do cumprimento da obrigação em detrimento, mais uma vez, à Lei da Usura.


2.2 Potencial de “esmagamento” do devedor e risco de escalada

Se o precedente se consolidar e for aplicado de forma ampla, existe risco real de que:

  • A indisponibilidade se torne medida automática ou quase automática nas execuções em que se demonstre a existência de algum imóvel (apesar de ser bem de família), mesmo sem critérios de gravidade.

  • Os devedores com única residência (e sem outros bens) fiquem completamente “imobilizados”: não poderão vender para quitar, não poderão usar o imóvel como garantia para renegociar ou refinanciar.

  • O credor, assim, ganharia desde cedo uma “fatia” preventiva indireta do imóvel, ainda que a execução não consiga chegar à penhora efetiva, o que criaria um desequilíbrio estrutural entre credores e devedores.

  • Surge um efeito “invisível” sobre o mercado imobiliário de devedores hipossuficientes: imóveis de famílias pobres podem tornar-se menos “negociáveis”, o que afeta o direito de alienação, mobilidade e planejamento familiar.


Por isso, a tendência poderia se converter num “direito-do-credor expansivo”, reduzindo gradativamente as zonas de proteção constitucional ao devedor.


3. O “monte mor” (acervo hereditário) composto unicamente pelo bem de família: permaneceria indisponível?

  • Se o devedor falece, e o único bem que integra seu patrimônio (e que era bem de família) é transmitido aos herdeiros, será que a indisponibilidade persistiria sobre esse imóvel?

  • O bem de família, continuaria “subsistindo” nos casos de falecimento: A morte do instituidor não extingue o benefício, que subsiste, em favor do sobrevivente ou dos herdeiros.

  • Logo, o imóvel continua protegido como bem de família dos herdeiros, salvo se se configure alguma hipótese de exceção da Lei 8.009/1990 ou de garantia real.


Quanto à indisponibilidade já decretada:

  • A indisponibilidade não se insere como restrição pessoal ao devedor, mas recai sobre o bem. Se o bem permanece no patrimônio dos herdeiros, a restrição documental (no registro imobiliário) e a restrição de disposição permaneceriam, pelo menos até que seja revogada ou declarada inconstitucional.

  • Em outras palavras: salvo decisão judicial que revogue a indisponibilidade ou que a julgue inconstitucional, a restrição permanecerá, afetando a capacidade de alienação pelos herdeiros.


Porém, ao herdeiro (que não contratou nem governou a obrigação) deve-se reconhecer um direito à superação da indisponibilidade, por via judicial, com fundamento em:

  1. Princípio da transmissão “limpa”: o herdeiro não deve sofrer ônus além dos previstos legalmente, especialmente aqueles incompatíveis com o direito de moradia.

  2. Direito adquirido à moradia: se o imóvel permanece como residência, a continuidade da indisponibilidade afrontaria direito fundamental dos herdeiros ao lar.

  3. Princípio da vedação ao enriquecimento sem causa / devolução ao estado anterior: se a indisponibilidade foi antecipatória e não há penhora efetiva, o herdeiro pode requerer levantamento parcial ou modulação da restrição.

  4. Controle de proporcionalidade: se o imóvel é exclusivamente familiar e há plena aptidão para saldar a dívida (ou parte), pode-se requerer autorização judicial para alienação, com aplicação do produto à dívida, com eventual devolução do excedente ao espólio.


Assim, a indisponibilidade persistiria até revogação, mas poderia ser combatida por herdeiros em ação própria, sobretudo se for demonstrado que prejudica o direito fundamental à moradia.


4. Venda do bem de família: precisa autorização judicial? Sob quais condições?

Na sistemática jurídica vigente, especialmente numa situação em que o bem de família está sujeito a indisponibilidade, a alienação ou oneração exigirá, via de regra, deliberação judicial. 


4.1 Necessidade de autorização judicial

  • Será necessária autorização judicial para alienar ou onerar o imóvel que está sob indisponibilidade, porque qualquer negócio jurídico não registrado será ineficaz frente à restrição no registro imobiliário (o registro de alienação ou oneração será recusado).

  • O juiz, no seu poder de controle, poderá condicionar a alienação ou oneração ao depósito ou garantia judicial do valor da dívida, ou à dedução do preço da execução, ou ainda à comprovação de que o negócio não prejudicará o direito do credor.


4.2 Condições exigíveis para autorização de alienação 

  1. Comprovação de que não há outro bem apto à penhora — deve demonstrar que todos os outros meios executivos foram tentados e se mostraram infrutíferos (princípio da menor onerosidade).

  2. Depósito judicial ou garantia equivalente — o juiz pode exigir que o produto da alienação, ou parte dele, seja depositado ou vinculado, para garantir a eventual satisfação do crédito.

  3. Reserva de parte para moradia ou subsistência — pode-se requerer que o juiz retenha parcela do valor para assegurar a continuidade da moradia ou remanescer com minimamente sustentação familiar.

  4. Transparência e publicidade — que a autorização seja formalizada por escrito, com fundamentação, e comunicada a terceiros interessados (credor, interessados registrários).

  5. Limitação temporal da autorização — que a autorização seja válida apenas por prazo determinado, sob pena de cessar eficácia da alienação se não concretizada no tempo fixado.

  6. Comprovação de que o negócio proposto é justo e não lesivo — que o preço seja adequado ou que a operação seja justificável em termos de mercado.


Dessa forma, a alienação ou oneração se daria sob controle judicial, com garantias à parte credora, mas sem obliterar o direito de o devedor usar seu imóvel para negociar.


5. Limites constitucionais e processuais à indisponibilidade do bem de família: tutela reforçada da moradia do devedor hipossuficiente


5.1 Eixo constitucional e principiológico

  • princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF), do mínimo existencial, da moradia (art. 6º e arts. da ordem social), do direito à propriedade (art. 5º, XXII e XXIII) e à função social da propriedade (art. 5º, XXIII, CF).

  • bem de família é expressão concreta de proteção constitucional da moradia e, portanto, sua proteção é reforçada, merecendo tutela restritiva frente à discricionariedade judicial de constrição.

  • o princípio da legalidade estrita, para medidas que limitem direitos fundamentais, só podem ser adotadas com previsão legal clara ou fundamento constitucional robusto, não por salto jurisprudencial indevido.

  • controle de proporcionalidade / razoabilidade deve ser exercido mesmo quando a indisponibilidade for estritamente necessária, justificável e com prevalência de ponderação a favor da moradia do devedor.


5.2 Interpretação da Lei 8.009/1990 e da sistemática legal

  • a lei estabelece hipóteses de penhora/constrição, não contemplando expressamente indisponibilidade, de modo que esta medida, se admitida, deve se subordinar às finalidades da lei (proteção familiar) e não neutralizá-las.

  • a impenhorabilidade do bem de família é regra que opera de forma “ex nunc” contra atos de execução, e que não cabe inovar a lei por via jurisprudencial para restringir o núcleo da norma.

  • a indisponibilidade, se admitida, deve subordinar-se ao princípio da menor onerosidade, não podendo ser usada se houver outros meios menos gravosos de garantir a execução.


5.3 O perigoso precedente do STJ (REsp 2.175.073) e ausência de proposição de limites necessários à indisponibilidade

  • Admitir, em caráter excepcional, a possibilidade de indisponibilidade, mas condicionar sua aplicação a requisitos rígidos:

    1. prévia demonstração da ineficácia dos meios executórios típicos (penhora, bloqueios etc.);

    2. vedação absoluta de indisponibilidade quando se trate do único bem de família que sustenta moradia (salvo caso extremo devidamente justificado);

    3. limite temporal estrito da indisponibilidade, sob pena de revogação automática;

    4. dever de motivação expressa e fundamentada quanto à proporção entre restrição e risco de dilapidação;

    5. previsão de direito do devedor de requerer sua revogação/intervenção judicial imediata, com suspensão da execução enquanto pendente esse pedido;

    6. obrigação de garantir a continuidade da moradia (uso e fruição) sem prejuízo.


5.4 No caso de ser o único bem, o bem de família

  • A impossibilidade de indisponibilidade absoluta (no máximo, limitação parcial ou proibição de alienação a estranhos, mantendo-se permutas internas, trocas ou adaptações);

  • Se autorizada alienação, que seja por valor justo e vinculação ao pagamento da dívida e remanescente ao devedor;

  • Reconhecimento de que a simples restrição à disposição é medida extremamente gravosa quando recai sobre patrimônio único, exigindo ponderação máxima.


5.5 Situação dos herdeiros (monte mor)

  • Que estes não sejam onerados indefinidamente pela indisponibilidade existente sem processo próprio, com direito de ação específica para liberação parcial ou modulação da restrição, com base nos princípios já elencados.

  • Havendo inventário, o juiz ordene a substituição da indisponibilidade por garantia efetiva, depósito ou outro mecanismo mais justo  e menos gravoso.


5.6 Pedido de controle de constitucionalidade

  • ação direta de inconstitucionalidade ou embargos de declaração com repercussão geral, para que se discuta a constitucionalidade da inovação jurisprudencial.

  • inovação que extrapola o papel interpretativo do Judiciário, adentrando esfera normativa ao modificar substancialmente a proteção legal consagrada à moradia.


5.7 Possíveis outros pedidos

  • Concessão de medida liminar (ou tutela antecipada) para suspender a indisponibilidade ou negar sua aplicação ao bem de família do devedor durante a pendência da execução.

  • Reconhecimento da impossibilidade de indisponibilidade sobre o único bem de família sem autorização judicial prévia e observância dos critérios defendidos.

  • Se já decretada, pedido de revogação ou modulação da medida com devolução parcial ou total da faculdade de disposição, sob condições.

  • Condenação do credor nas custas, honorários e possível indenização caso a indisponibilidade seja declarada indevida ou inconstitucional.


Conclusão


A inovação jurisprudencial representada pelo REsp 2.175.073/PR (Nancy Andrighi) inaugura uma nova fase no tratamento da proteção do bem de família, ao permitir indisponibilidade na execução civil. Esse precedente, se confirmado e ampliado, impreterivelmente desaguará num modelo de execução cada vez mais, e sempre, favorável aos credores, colocando em risco o núcleo de proteção constitucional à moradia e aos hipossuficientes.


No entanto, a admissibilidade da medida não implica sua legitimidade irrestrita. Há que se articular um escudo robusto baseado nos princípios constitucionais, no texto da Lei 8.009/1990, no controle de proporcionalidade e nas garantias processuais, para que a indisponibilidade seja apenas exceção, excepcionalíssima, muito bem justificada. Nunca um caminho automático de constrição do imóvel residencial humilde de um devedor singular.


Dr. Renato Cunha


 
 
 

Comentários


bottom of page